segunda-feira, 19 de março de 2012

Repórter trabalha infiltrado em repartição pública e flagra escândalo de corrupção

Licitações com cartas marcadas, negociatas, combinações indecorosas de suborno, propinas, truques para escapar da fiscalização. Certamente, você já ouviu falar muito de corrupção. Mas hoje você vai conhecer a cara dela. E do jeito mais deslavado.

Durante dois meses um repórter do Fantástico trabalhou em uma repartição pública. O que ele viu - e gravou - é um escândalo. Um retrato de como algumas empresas agem em órgãos do governo para ganhar dinheiro. Muito dinheiro. O nosso dinheiro.

Entre quatro paredes, o que a gente paga em impostos e que deveria ser destinado à saúde, à educação e outros serviços vai parar no bolso de empresários inescrupulosos e funcionários públicos corruptos. Uma vergonha.

A reportagem é de Eduardo Faustini e André Luiz Azevedo.

Empresários abrem o jogo. Licitações fraudadas são mais comuns do que a gente imagina. O desvio de dinheiro público é tratado por eles como coisa normal. E eles confessam que pagam propina. Os valores são milionários.

Você vai se assustar com o truque que eles usam para esconder o suborno.

O Fantástico mostra agora o mundo da propina, da fraude, da corrupção. De um jeito como você nunca viu. E vale a pena você ver: É o seu dinheiro que eles estão roubando.

Nosso objetivo foi descobrir como isso é feito. O Fantástico pediu ajuda à direção de um hospital de excelência, hospital de pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um grande hospital público infantil. Queríamos assumir o lugar do gestor de compras da instituição, acompanhar livremente todas as negociações, contratações, compras de serviços. Saber se existe oferta de propina, pagamento de suborno de um dinheiro que deveria ser sagrado: o da saúde.

Conseguimos. Durante dois meses, nosso repórter Eduardo Faustini frequentou o hospital. Na verdade, foi bem mais do que isso. Ele teve um gabinete aqui dentro. Foi o novo gestor de compras da instituição. Essa informação só era de conhecimento de duas pessoas no hospital, o diretor e o vice-diretor. Para todos os outros funcionários, o nosso repórter era mesmo o novo responsável pelo setor de compras.

“Todo comprador de hospital, a princípio, é visto como desonesto. Acaba que essa associação do fornecedor desonesto com o comprador desonesto acaba lesando os cofres públicos. E a gente quer mostrar que isso não é assim, em alguns hospitais não é assim que funciona”, disse Edmilson Migowski, diretor do Instituto de Pediatria/UFRJ.

As negociações foram todas filmadas de três ângulos diferentes e levadas até o último momento antes da liberação do pagamento. Evidentemente, nenhum negócio foi concretizado, nenhum centavo do dinheiro do contribuinte foi gasto. Só mesmo o tempo dos corruptos é que foi perdido. E eles agora vão ser desmascarados.

Com autorização da direção do hospital, o repórter Eduardo Faustini convocou licitações em regime emergencial. Elas são feitas por convite, são fechadas ao público. O gestor convida quem ele quiser.

Sem nenhuma interferência do hospital, o repórter escolheu quatro empresas, que estão entre os maiores fornecedores do Governo Federal.

Três dessas empresas são investigadas pelo Ministério Público, por diferentes irregularidades. E, mesmo assim, receberam juntas meio bilhão de reais só em contratos feitos com verbas públicas.

Em frente ao repórter gestor de compras, nessas cadeiras, se sentaram diretores, donos de empresas que deram uma triste aula de como se é desviado o dinheiro dos serviços públicos.

Veja a reportagem completa no link abaixo:

http://tinyurl.com/82df273

domingo, 18 de março de 2012

Hospital Lourenço Jorge acaba de perder cirurgiões vasculares. Unidade já não tinha especialistas em tórax e cérebro

Superlotação na emergência do Hospital Lourenço Jorge
Superlotação na emergência do Hospital Lourenço JorgeFoto: Emanuel Alencar / Agência O Globo/10.10.2011
Flávia Junqueira
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A emergência do Hospital Municipal Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca, recebe, em média, sete baleados e 350 acidentados ao mês. A unidade, que fica nas proximidades de uma via expressa, atende vítimas de trauma 24 horas por dia. A despeito disso, os cinco cirurgiões vasculares da unidade foram demitidos — eles eram funcionários da Fiotec, organização social que gerencia projetos com a Secretaria municipal de Saúde. Há cerca de um ano, os cirurgiões torácicos também foram retirados do hospital, que nunca teve serviço de neurocirurgia.
— A emergência do Lourenço Jorge recebe vítimas de acidentes de vias de alta velocidade. Seria obrigatório ter cirurgia vascular, torácica e neurocirurgia. Estamos falando de emergências. São eventos que não podem esperar a chegada de uma ambulância, as intercorrências do trânsito e a disponibilidade de equipe em outro hospital. O fato é que todos os hospitais estão sobrecarregados. É uma irresponsabilidade do secretário de Saúde — diz o médico Pablo Vazquez, coordenador da Comissão de Saúde Pública do Cremerj.
O médico, que trabalha no Hospital Souza Aguiar, alerta que a maior parte das equipes de plantão na unidade do Centro não tem cirurgião vascular.
Hoje, os casos de neurocirurgia precisam ser encaminhados ao Miguel Couto, arriscando-se a agravar as sequelas e a vida do paciente. Em 29 de novembro do ano passado, um senhor de 72 anos deu entrada na emergência do Lourenço Jorge com traumatismo crânio-encefálico e no tórax. A equipe acionou a central de regulação para tentar a transferência para um hospital com neurocirurgião. Tarde demais. O paciente morreu às 23h41 daquela terça-feira.
— Estou cansado de ver pessoas morrendo e ficando sequeladas por motivos totalmente evitáveis — desabafa um médico do Lourenço Jorge, que prefere não se identificar.
O presidente do Sindicato dos Médicos, Jorge Darze, afirma que os plantões na unidade ficaram restritos a cirurgia geral e ortopedia para casos cirúrgicos.
A Secretaria municipal de Saúde alega que se baseou num estudo de demanda feito em parceria com a Fiotec para fazer o "remanejamento dos profissionais de cirurgia torácica e vascular para unidades com maior demanda".
Em nota, a secretaria informou que, em 2011, o Lourenço Jorge realizou nove cirurgias de emergência do aparelho circulatório, o que inclui as cirurgias vasculares. O livro de ocorrências dos plantões do serviço — agora extinto — mostra que 41 cirurgias foram feitas no ano passado, entre contenção de sangramentos em artérias de grande porte e amputações de pacientes com membros gangrenados, a maioria diabéticos descompensados.
— Não são traumas, mas são emergências. Sem a cirurgia, a pessoa morre — alerta o médico do Lourenço Jorge.
A nota da secretaria informa que, segundo o diretor do hospital, “o atendimento a diabéticos representa a maior parte da demanda clínica, porém, a quantidade de casos com necessidade de procedimentos cirúrgicos é pequena”. Os casos de trauma, que incluem acidentes, quedas e agressões, representaram cerca de 21% da demanda do hospital, e não são necessariamente cirúrgicos, completa a secretaria, acrescentando que os cirurgiões vasculares e torácicos foram remanejados para unidades com maior demanda.
A secretaria afirma que o Lourenço Jorge conta com suporte do Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea, e está ampliando o atendimento na região da Barra, por meio de convênio com o hospital da Universidade Gama Filho — antiga Clínica São Bernardo, na Avenida das Américas. “A unidade conveniada atende pacientes eletivos transferidos do Lourenço Jorge, em especialidades como cirurgia geral, vascular, neurocirurgia e urologia”, diz a secretaria.
Em seu site na internet, a Gama Filho informa, no entanto, que “para maio, estarão abertos ao público os centros nefrológico, cardiológico, cirúrgico e de terapia intensiva”.

Leia a nota da Secretaria municipal de Saúde na íntegra:
“A Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil informa que está ampliando o serviço de atendimento de diversas especialidades na região da Barra da Tijuca, por meio de convênio com o hospital da Universidade Gama Filho. A unidade conveniada atende pacientes eletivos transferidos do Hospital Municipal Lourenço Jorge, via SUS, em especialidades como cirurgia geral, vascular, neurocirurgia e urologia, entre outros, enquanto a unidade da Prefeitura continua atendendo a todas especialidades de emergência, conforme seu perfil. Além disso, a SMSDC ampliará a capacidade da emergência do hospital Lourenço Jorge com a contratação de profissionais, por concurso público em fase de conclusão. Serão convocados 1.700 médicos para toda a rede.
A rede municipal de saúde e as unidades conveniadas trabalham de forma integrada, visando otimizar os recursos existentes nos hospitais. Desta forma, e de acordo com estudo de demanda feito em parceria com a Fiocruz, por meio da Fiotec, houve remanejamento dos profissionais de cirurgia torácica e vascular para unidades com maior demanda. Em 2011, o Hospital Lourenço Jorge realizou nove cirurgias de emergência do aparelho circulatório, o que inclui as cirurgias vasculares.
A região conta, ainda, com uma unidade de pronto atendimento (UPA) na Cidade de Deus, que recebe casos de menor gravidade, e com suporte do Hospital Municipal Miguel Couto, que fica a cerca de 16 quilômetros, e oferece serviços de referência em diversas especialidades, dando apoio ao Hospital Lourenço.
O Hospital Municipal Lourenço Jorge recebeu no ano passado, mensalmente, 7 baleados e 350 acidentados de todas as naturezas (colisão, queda de moto, atropelamento etc). Os atendimentos clínicos/ambulatoriais responderam por 79% dos registros da unidade em 2011. Os casos de trauma, que incluem acidentes, quedas, agressões etc, representaram cerca de 21% da demanda do hospital, e não são necessariamente cirúrgicos. Há pouca variação do atendimento em função do dia da semana.
De acordo com o diretor do hospital, o atendimento a diabéticos representa a maior parte da demanda clínica, porém, a quantidade de casos com necessidade de procedimentos cirúrgicos é pequena. Conforme informado, houve remanejamento dos profissionais de cirurgia torácica e vascular para unidades com maior demanda, de acordo com estudo de demanda feito em parceria com a Fiocruz, por meio da Fiotec.
O Hospital Municipal Lourenço Jorge nunca ofereceu serviço de neurocirurgia desde sua abertura. A unidade trabalha de forma integrada a hospitais de referência da rede, como o Hospital Miguel Couto. A unidade Core (Centro de Operações Regional de Emergência) que será aberta funcionará de forma independente ao hospital, como uma unidade avançada, dando apoio às emergências clínicas.”


Leia mais: http://extra.globo.com/noticias/rio/hospital-lourenco-jorge-acaba-de-perder-cirurgioes-vasculares-unidade-ja-nao-tinha-especialistas-em-torax-cerebro-4337351.html#ixzz1pWFv56Q3

sábado, 17 de março de 2012

Falta remédio para leucemia

SAÚDE

Falta remédio para leucemia

Desde fevereiro, distribuição de medicamento está irregular e pacientes recorrem ao MPPE e à Justiça para garantir o tratamento

Publicado em 16/03/2012, às 07h33

Do JC Online

Washington Ataide não recebe o remedio há 15 dias. Cada caixa custa R$ 12 mil / Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

Washington Ataide não recebe o remedio há 15 dias. Cada caixa custa R$ 12 mil

Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

A interrupção do tratamento de câncer tem levado ao desespero pacientes da Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope). Portadores de leucemia mieloide crônica denunciam que desde fevereiro está irregular a distribuição de mesilato de imatinibe, de nome comercial Glivec, medicamento utilizado em substituição ao transplante de medula, de uso contínuo e que aumenta o tempo de vida do usuário. Cansados e temendo o agravamento da leucemia, os doentes estão recorrendo ao Ministério Público Estadual (MPPE) e à Justiça. Também preparam um manifesto para hoje, na porta do hospital.

"Antes de morrer tenho que agir, brigar pelos meus direitos", diz o técnico em eletrônica Washington Ataíde de Moura, 44 anos, que desde o dia 1º de março está sem medicamento e busca, diariamente, esclarecimento sem sucesso no Hemope. Pálido e debilitado, Washington não se conforma com a falta de atenção. "Sinto dores nas pernas e fraqueza. Sou paciente do Hemope há três anos, procuramos informação e ninguém explica exatamente porque o remédio está faltando. Quando vamos à farmácia do hospital, ninguém também sabe dizer quando ele estará disponível", conta.

Washington levou o caso à imprensa e protocolou denúncia no Ministério Público Estadual. No dia seguinte foi buscar ajuda no Conselho Estadual de Saúde, que deve fiscalizar o SUS, onde foi orientado, no entanto, a procurar a Associação de Usuários (Aduseps), para mover ação na Justiça e conseguir resultado mais rápido. A Promotoria da Saúde do MPPE informa que encaminhará ofício ao Hemope cobrando esclarecimentos. Médicos do hospital afirmam que a interrupção do tratamento é prejudicial. "Pode causar uma leucemia aguda e tornar a doença resistente até mesmo ao transplante de medula", explica um deles.

Cada caixa de Glivec, afirmam, custa R$ 12 mil, o que impossibilita a compra individual. Esta é a segunda vez em três semanas que os doentes reclamam da falta do medicamento.

O diretor presidente do Hemope, Divaldo Sampaio, minimizou a denúncia e disse desconhecer que doentes em tratamento há mais de um ano estejam sem tomar o remédio. "É um problema dessa semana, da última segunda-feira", afirmou, ignorando inclusive a denúncia anterior, de fevereiro.

Afirmou que a atual falta de Glivec se deve ao envio de um quantitativo incompleto (não informou a quantidade exata), pelo Ministério da Saúde. "Temos 200 pacientes cadastrados, e mensalmente essa demanda cresce 30% ou menos", alegou. De quem seria a culpa? O diretor do Hemope não sabe dizer. "Mudou o processo da Apac (Autorização de Procedimentos Ambulatoriais de Alto Custo)", respondeu, sem mais uma vez identificar se o erro era do Hemope ou do Ministério da Saúde.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Alunos de Enfermagem da UFMT acionam o MP contra os de Medicina







    09/03/2012 - 08:00

    Alunos de Enfermagem da UFMT acionam o MP contra os de Medicina

    Da Redação - Lucas Bólico
    Foto: Lucas Bólico - ODKarine Campos é presidente do CA de Enfermagem, Karine Campos é presidente do CA de Enfermagem,
    Estudantes de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) acionaram o Ministério Público para tentar dar um basta no sistemático assédio moral praticado por estudantes do curso de Medicina. O Centro Acadêmico (CA) do curso também protocolizou uma denúncia na própria UFMT, no Coren (Conselho Regional de Enfermagem) e na Delegacia da Mulher.

    A presidente do CA de Enfermagem, Karine Campos, afirma que o último ato de desrespeito aconteceu publicamente na segunda-feira (5), às 12h30, em frente ao Restaurante Universitário (RU). Ela conta que os estudantes de Medicina começaram a provocação cantando músicas ofensivas contra as estudantes do curso, sempre colocando a profissional de Enfermagem como objeto sexual.

    “Era o primeiro dia de aula e eles já chegaram no RU sabendo essas letras”, conta Karine. De acordo com a estudante, os calouros são incitados desde o início do curso a desrespeitar os colegas de Enfermagem. Para as estudantes, as letras das músicas ofendem a dignidade das enfermeiras.

    Karine filmou a última ação. “Isso [assédio] sempre acontece, mas é difícil provar. Desta vez tem o vídeo”. As imagens foram anexadas aos documentos enviados para o MP. E esta não é a primeira denúncia feita desta natureza.

    “Eles fizeram uma festa com uma foto de uma enfermeira e nós pedimos para retirar”, lembra. A imagem saiu do panfleto, mas foi postada nas redes sociais com uma tarja de censurado, para provocar, segundo ela.

    Alunas de enfermagem também reclamam da dinâmica entre os estagiários de Medicina e Enfermagem no Hospital Universitário Júlio Muller. Elas alegam que a relação lá também não é salutar. "Eles passam dos limites. Uma vez eles invadiram os corredores cantando essas músicas durante o horário de aulas", relembra.

    Em entrevista por telefone, a reitora Maria Lucia Cavalli Neder afirmou não ter conhecimento de nenhuma denúncia dessa natureza, mas assegurou que, caso chegue ao seu conhecimento, as reclamações serão apuradas. Já as estudantes reclamam que a universidade é leniente com os trotes e assédios que acontecem ao longo do curso.

    “A universidade infelizmente não faz nada, ele repassam a denúncia para o curso de Medicina, que repassa para o Centro Acadêmico, que faz uma nota de retratação”, queixa-se Karine.

    Fonte:http://www.olhardireto.com.br/index.asp

    Imagens mostram dificuldades nos atendimentos do Samu

    Quando a questão é matemática, a solução é fácil. Mas quando é questão de saúde, o problema fica difícil de ser resolvido. São Paulo tem 11 milhões de habitantes. E 120 ambulâncias do Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
    Em todo o Brasil, há casos assim. E que ficam mais graves com ambulâncias quebradas, falta de médicos, falta de infraestrutura. Nossos repórteres acompanharam o trabalho dos socorristas e constataram: o serviço criado para salvar vidas não dá conta de atender a demanda.
    Em São Luís, um aposentado morreu depois que o socorro foi negado por quatro vezes.
    Em São Paulo, policiais militares fizeram o parto de uma mulher que não conseguiu uma ambulância.
    Veja os flagrantes impressionantes:
    Saímos rumo à sede da Samu em São Paulo, mas nem precisamos chegar lá. Na Marginal Pinheiros, encontramos uma equipe no meio de um atendimento.
    O acidente deixou dois motoqueiros caídos no chão com ferimentos leves.
    “Ele está equilibrado, está fora de perigo”, disse a enfermeira.
    “São mais contusões, escoriações, mas a gente está aguardando outro resgate para levar, porque são duas vítimas”, informou um médico.
    Vemos um nó. Uma equipe com três socorristas do Samu. Uma vitima já estável dentro da ambulância, já poderia partir para o hospital. Mas falta uma segunda ambulância para a segunda vítima. O Samu não tem unidade de resgate disponível. Foi pedido apoio para o Corpo de Bombeiros.
    Eram 18h, pico do trânsito. E a ambulância vinha de longe.
    Finalmente chega o resgate, 30 minutos depois do registro da ocorrência.
    Com o motoqueiro já imobilizado, a remoção é rápida. Achamos que tudo estava resolvido.
    Mas enquanto acontecia o atendimento do Samu, os curiosos causam outro acidente. Uma freada brusca. É muito comum acontecer um segundo acidente durante o atendimento de uma primeira ocorrência. E aconteceu. Diante da equipe de socorristas.
    Com a ajuda da companhia de tráfego, os paramédicos seguram o trânsito e fazem o primeiro atendimento ali mesmo, no meio da pista. O caso preocupa a equipe.
    “Ela está estável, mas a contusão dele foi mais grave. Ele voou e bateu a cabeça e coluna cervical no chão”, conta o socorrista. Ele diz que a prioridade será dada ao caso mais grave. “Os recursos são sempre menos que adequados a demanda”, diz.
    Vai um, enquanto o outro espera uma terceira ambulância.
    São 120 viaturas do Samu e 40 do Corpo De Bombeiros para todo o município de São Paulo. Com mil e quinhentos quilômetros quadrados e mais de 11 milhões de habitantes.
    Em Salvador, o cenário é pior. A cidade tem menos ambulâncias do que determina o Ministério da Saúde. Pelo menos 22 quebradas. E cinco novas à espera de equipes de socorro.
    “Hoje, infelizmente, tem ocorrência que nós levamos 30, 40 minutos para chegar ao local”, afirma o presidente do sindicato da Samu da Bahia.
    Na periferia de São Luís, a morte de um pedreiro virou caso de polícia. O Ministério Público estadual do Maranhão investiga a denúncia de omissão de socorro. A família diz ter feito quatro ligações para o Samu, sem que nenhuma ambulância fosse mandada.
    Só em São Paulo, a central do Samu recebe nove mil ligações por dia.
    Esta semana, o caso de uma mulher em trabalho de parto não foi tratado como prioridade. O bebê nasceu pelas mãos de dois policiais militares. E o Samu chegou apenas para remover mãe e filho para a maternidade.
    “Quando chegou a solicitação, ela tinha começado a ter as contrações há pouco tempo e não estava ainda de dez em dez minutos. Então, seria o início de um trabalho de parto. Precisa de ambulância, mas não imediatamente”, argumenta Gustavo Guilherme Kuhlmann, coordenador médico do Samu-SP.
    “Eu tenho que estabelecer as prioridades que o sistema me estabelece para poder mandar primeiro os recursos para os casos mais graves”, completa.
    Uma escolha difícil.
    O Samu é coordenado pelo Ministério sa Saúde, mas quem gerencia o trabalho são as secretarias municipais ou estaduais de saúde, dependendo da cidade.
    Em nota, o ministério disse que metade da verba vem do Governo Federal e metade dos governos locais. A nota também informa que o ministério doa ambulâncias e repassa recursos mensais para ajudar no custeio do serviço.
    Hoje o país conta com 2009 ambulâncias e 101 motos em operação pelo Samu. Como vimos, não têm sido suficientes.

    Correção: No texto publicado às 8h02, dissemos que São Paulo tem um milhão e meio de quilômetros quadrados. Na verdade, são mil e quinhentos quilômetros quadrados, como no texto corrigido, às 8h23.
    Veja a reportagem na íntegra no link abaixo:
    http://glo.bo/yqauKH

    quarta-feira, 14 de março de 2012

    A praga das consultas a jato

    Atendimentos médicos que não duram mais do que 15 minutos tornam-se frequentes, o que provoca o erro no diagnóstico e na prescrição de remédios. O que você pode fazer se tiver sido vítima dessa prática

    Monique Oliveira e Luciani Gomes

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    A cena é cotidiana nos consultórios médicos: entre o bom-dia e o até logo dados pelo profissional, passam-se apenas 20, 15 e, às vezes, inacreditáveis três minutos. Quando muito, dá tempo apenas para falar dos sintomas mais aparentes, pegar na mão uma lista de exames a ser feitos ou de remédios a ser tomados. Para que servem e quando mesmo devem ser tomados? Difícil lembrar, já que as explicações foram tão rápidas que nem deu para memorizá-las como se deveria. Também é evidente que o médico não teve tempo para avaliar com a precisão necessária o que foi prescrito. Trata-se de uma realidade cada vez mais frequente, tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo. Inclusive em consultórios particulares, essas consultas, que mais se parecem com um drive-thru de lanchonete, são registradas. E isso contribui para as estatísticas judiciais que mostram aumento nos casos de erros médicos.

    A banalização das consultas a jato é tão grande que levou a uma distorção. Hoje, ser atendido em 15 minutos é considerado um privilégio. Um estudo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto, em São Paulo, deixou isso claro. Os pesquisadores acompanharam 480 consultas na rede pública e mediram, de cronômetro na mão, o tempo que cada doente passava no consultório. Logo em seguida, perguntaram o nível de satisfação com a consulta. Quem foi atendido entre 11,4 e 15 minutos considerou o atendimento excelente. Os que ficaram de 7,6 a 11,3 minutos acharam a consulta boa. Já os que permaneceram com o médico de 3,8 a 7,5 minutos consideraram-na regular e apenas os que ficaram de 0,1 a 3,7 minutos – ou seja, nem quatro minutos – acharam que foram mal atendidos.
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    Apesar dos efeitos nocivos das consultas-relâmpago, não há no Brasil uma regulamentação que determine o tempo mínimo que uma consulta deve ter. Há apenas um consenso entre os bons médicos de que é impossível fazer uma avaliação correta do paciente em menos de 25 minutos. “Não se coloca o tempo de consulta no contrato porque se supõe que o médico agirá com consciência ética”, afirma Rogério Toledo, diretor do setor de Proteção ao Paciente da Associação Médica Brasileira (AMB). Mas como fazer isso na rede pública, por exemplo, na qual cada médico tem pelo menos 16 pacientes marcados para prestar atendimento em uma jornada de quatro horas? Ou seja, dedicar a cada doente escassos 15 minutos? Esse tempo, aliás, é usado como marcador de produtividade na rede pública, de acordo com o Manual de Auditoria de Atenção Básica do Ministério da Saúde. O documento serve para analisar o atendimento nas Unidades Básicas de Saúde e, segundo uma de suas fórmulas, serviço produtivo é aquele que atende em 15 minutos. Na rede conveniada, o parâmetro é que os profissionais atendam no máximo quatro pacientes por hora – ou seja, os mesmos 15 minutos para cada um.

    O problema é que nem sequer a “regra” dos 15 minutos é respeitada. “Na rede pública há médicos que atendem em dois minutos, no corredor mesmo”, relata o médico Fernando Lucchese, diretor da Santa Casa de Porto Alegre. “Já ouvi colegas dizer que eram pressionados a atender em menos de dez minutos”, completa o proctologista aposentado Albino Sorbino, que durante anos trabalhou no Hospital do Servidor Público de São Paulo. A demanda na instituição pública comprometia o atendimento em seu consultório. “Eram, no mínimo, dois casos graves por dia”, lembra. “Não tinha como fazer essa consulta em 15 minutos e eu ficava sempre três horas além do meu horário.”

    Pouco a pouco, começam a surgir indicativos dos danos causados pelas consultas rápidas. Um estudo feito pela Universidade de Ghent, na Bélgica, revelou um pouco das diferenças que ocorrem quando uma consulta é rápida demais ou acontece no tempo certo. Os cientistas analisaram 2.801 gravações de consultas realizadas em 183 hospitais da União Europeia e categorizaram as relações estabelecidas durante o encontro com o médico. Nos curtos, o tempo é dividido entre perguntas e instruções. Já nos longos, observou-se mais tempo gasto no levantamento de problemas psicológicos que podem estar relacionados aos sintomas e no fornecimento de orientações gerais ao doente. Este último, é claro, é o modelo mais ideal. “A consulta não é o momento de diagnóstico preciso”, explica o gastroenterologista Rogério Toledo, da AMB. “É o momento de se inteirar dos hábitos do paciente.”
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    Uma boa consulta envolve também a coleta do histórico do paciente, exame clínico completo, indicação detalhada de exames complementares, se necessários, e orientações terapêuticas baseadas em pelo menos mais de uma hipótese de diagnóstico. “Tarefa difícil para 15 minutos”, diz o infectologista David Uip, diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.

    Há outros prejuízos quando esse roteiro não é cumprido. O tempo mínimo compromete a relação com o paciente e pode levar o médico a somente atenuar os sintomas sem tratar a doença. “O profissional vira um grande fazedor de receitas”, diz Lucchese, de Porto Alegre. O atendimento rápido também compromete a interligação de sintomas com situações, já que o paciente apenas responde a perguntas ou é dirigido pelo médico. “E é só deixando o paciente falar que se podem fazer conexões com uma sintomatologia que inicialmente não estaria relacionada à doença”, diz o cardiologista Múcio Oliveira, diretor de emergência do Instituto do Coração, em São Paulo. “O atendimento rápido vai comprometer o diagnóstico”, diz Rogério Toledo.

    Outros riscos são sair da consulta sem entender como tomar o remédio – e tomá-lo errado – ou receber uma prescrição incorreta. No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, 50% dos remédios comercializados são prescritos, dispensados ou usados de maneira errada. E, segundo especialistas, 49% dos erros são feitos pelo médico, na hora da prescrição. “O profissional faz um diagnóstico apressado, errôneo, e receita o remédio errado”, diz Fernando Lucchese. “O erro nas prescrições é uma consequência inevitável dessa consulta que não privilegia o olho clínico.” Além disso, a pressa eleva a chance de o paciente se submeter a exames desnecessários, sujeitando-se, por exemplo, a receber doses de radiação emitidas por aparelhos de imagem, sem que fosse preciso.

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    EXPRESSO
    Sorbino trabalhou na rede pública de atendimento. Colegas se
    queixavam de ser obrigados a atender em menos de dez minutos
    A falta de coleta de dados e um histórico mal tirado podem levar inclusive à morte. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo indenizou uma família em R$ 30 mil por causa de um atendimento ruim em um hospital privado. Uma criança de 1 mês e 7 dias de vida, com pneumonia grave, voltou para casa apenas com uma prescrição de Novalgina. “Ela morreu de pneumonia porque o médico não coletou os dados suficientes na hora da consulta”, relata o advogado Vinicius de Abreu, representante da ONG Saúde Legal, entidade de defesa de pacientes.

    Uma suposta falta de médicos poderia ser usada para justificar a pressa. Mas isso não é real no Brasil. Em outubro deste ano, os conselhos regionais de medicina registravam a existência de 371.788 médicos em atividade no País, um salto de 530% desde 1970, percentual cinco vezes maior que o crescimento da população. As razões apresentadas por entidades médicas para a disseminação da praga da consulta a jato repousam em outras esferas. Elas argumentam que a baixa remuneração dos profissionais é que provoca a necessidade de atender vários pacientes em um mesmo período. Isso fica mais evidente na rede pública, na qual os baixos salários não atraem muita gente. Como resultado, o número de médicos não seria suficiente para atender à demanda. “Não é novidade que faltam médicos nos serviços de urgência em hospitais públicos”, diz Aloísio Tibiriçá, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina.

    Na rede conveniada, que hoje já atende 9% da população brasileira, menos médicos se credenciam aos planos de saúde também por causa da baixa remuneração. Há planos que pagam menos de R$ 30 por consulta. A consequência: muitos profissionais atendem mais gente do que deveriam para conseguir um rendimento satisfatório. “O médico precisa manter o consultório, mas com os valores pagos só consegue isso aumentando os pacientes por hora ou cobrando no particular”, afirma Márcia Rosa de Araújo, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro.

    Essa realidade vem merecendo reação dos próprios médicos. Recentemente, verificou-se uma onda de paralisações entre os profissionais vinculados a convênios. Em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, os médicos Marco Leite e João Botelho decidiram fazer o contrário. Para mostrar à população como deve ser um atendimento impecável, reforçaram o time de profissionais em uma das Unidades Básicas de Saúde da cidade em um dia de atendimento. “Tivemos um reforço de oito médicos onde antes havia quatro”, diz João Botelho. E os pacientes finalmente foram atendidos corretamente.
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    É direito do médico pleitear salários mais altos. Mas os governos, os profissionais e as entidades que os representam devem ficar em alerta para não permitir que a baixa remuneração e a ausência de infraestrutura continuem a ser motivos para justificar a proliferação da prática das consultas expressas e suas consequências danosas aos pacientes. As entidades médicas deveriam também – inclusive para proteger os próprios profissionais – exigir das autoridades de saúde melhorias nos sistemas de saúde público e privado.

    No âmbito particular, não há muita explicação para o fato de um médico receber o que quiser por uma consulta e atender seu paciente rapidamente. Uma das argumentações dos profissionais é a de que muitos trabalham em hospitais públicos ou conveniados durante o dia e acabam ficando com pouco tempo para atender à noite no consultório. Mas o paciente não tem culpa disso.

    O que também contribui para a armadilha das fast consultas é uma formação médica baseada mais na técnica do que em um atendimento mais humano. Além disso, muitos médicos são oriundos de faculdades de qualidade ruim, de onde saem às vezes sem saber sequer como realizar um exame clínico correto. Atualmente, o Ministério da Educação supervisiona 17 cursos de medicina que obtiveram conceitos 1 e 2, considerados baixos, no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes. Entre elas estão quatro universidades federais.

    Como não há, porém, uma determinação legal sobre o tempo mínimo de uma consulta, o paciente só poderá processar o médico quando houver um dano evidente e ficarem caracterizadas negligência, imprudência ou imperícia. “Não é porque a consulta foi rápida que o serviço foi mal prestado”, diz a advogada Joana Cruz, do Instituto de Defesa do Consumidor. No entanto, a curta duração da consulta pode ser um indício de que o médico agiu com negligência. “Nesse caso, o consumidor pode usar a curta duração como contextualização”, afirma o advogado Alexei Marqui, especializado em direito do consumidor.

    Para isso é necessário que o paciente produza uma prova de que o tempo di­minuto resultou em negligência. “Ele pode pedir um comprovante da duração da consulta para o médico”, orienta Marqui. Mesmo na ausência de prova, dependendo do caso, o juiz pode determinar a inversão do ônus da prova. Nessas circunstâncias, como o paciente é considerado leigo, a Justiça entende que seria mais fácil o médico produzir uma prova que o defenda do que o paciente oferecer uma prova que acuse o médico.

    Mesmo sem um erro evidente, no entanto, vale registrar a queixa nas operadoras de saúde (para usuários de planos) ou no Ministério Público e secretarias de Saúde (pacientes da rede pública). O doente atendido por médico particular pode resolver na hora. A advogada especializada em saúde Rosana Chiavassa orienta só pagar a consulta depois do atendimento. “Dessa forma, se a pessoa considerar que foi mal atendida ou atendida rapidamente, é só levantar e ir embora sem pagar”, diz. Os indivíduos também têm a opção de recorrer à Justiça quando considerarem que a consulta expressa deixou consequências danosas à saúde.

    A denúncia aos órgãos competentes pode ser uma boa opção para detonar um movimento em massa por consultas mais extensas. Foi a partir da pressão popular, por exemplo, que a Agência Nacional Suplementar de Saúde decidiu diminuir o tempo de espera para a marcação de consultas e exames por usuários de planos de saúde.

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    Quando os médicos erram


    O número de processos aumentou
    sete vezes em apenas uma década

    Alexandre Mansur

    Na sala de cirurgia, o médico Pedro Paulo Monteleone prepara-se para retirar o útero de Rosa Gonçalves Dias. Às 7 horas da manhã, a paciente teve o intestino lavado e os pêlos pubianos raspados. A anestesia peridural, que corta qualquer sensibilidade da cintura para baixo, faz efeito. Como Rosa tivera seus três filhos por meio de cesariana, Monteleone abre 12 centímetros de pele logo acima do púbis, no mesmo local dos cortes anteriores, para evitar uma nova cicatriz. É trabalhoso chegar até o útero. O médico corta uma primeira camada de gordura, abre a aponeurose, um tecido fino que envolve toda a cavidade abdominal, afasta os músculos peritoniais e alcança o intestino. A cada etapa, grampos metálicos são colocados nas bordas das incisões para manter os órgãos afastados. O intestino é empurrado, com uma compressa, em direção ao umbigo. Em meia hora, o médico já enxerga bem o útero da paciente. A fase mais crítica da cirurgia começa agora. Com todo o cuidado, Monteleone corta os ligamentos que unem as trompas ao útero. Quando a paciente está deitada, a bexiga fica apoiada sobre o útero. É preciso afastá-la com uma gaze, lentamente, e ir cortando com uma pequena tesoura os pedaços de tecido que unem as finas paredes dos dois órgãos. É como abrir um envelope, descolando as bordas, sem rasgar o papel. Monteleone sabe que qualquer corte 1 milímetro mais profundo pode perfurar a bexiga. Foi exatamente isso que aconteceu naquela manhã de agosto de 1994. O médico Monteleone furou a bexiga de sua paciente Rosa.

    Monteleone, 58 anos, obstetra e ginecologista há 33, é formado em uma das melhores faculdades do país, a Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, onde também foi professor durante três décadas. Naquela manhã, ao perceber que tinha cortado a bexiga de Rosa, parou o que estava fazendo. Pediu fio e agulha apropriados à instrumentadora, costurou o órgão afetado com cinco pontos e só depois prosseguiu na retirada do útero. Duas horas mais tarde, quando a paciente já estava no quarto, ainda levemente sedada, o médico explicou-lhe o que ocorrera durante a operação. Se não fosse pelo rompimento da bexiga, Rosa teria alta do hospital em menos de 24 horas. Em razão do acidente, ela ficou com uma sonda e a internação foi prolongada por uma semana, até a ferida interna cicatrizar. Hoje, acadêmico renomado e profissional de sucesso, Monteleone preside o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Cremesp. Por sua mesa, na sede da entidade, passam quilos de papéis repletos de acusações graves contra seus colegas de profissão. São casos de erro médico. Em uma década, o número de processos por negligência ou imperícia encaminhados anualmente ao Conselho Federal de Medicina, CFM, a última instância por onde passam processos vindos de todo o Brasil, aumentou sete vezes. Ao todo, foram 356 processos (veja gráfico). O número de condenados caiu porque o Conselho diz que não consegue julgar tantos casos. Há 200 na fila de espera.

    "Quem diz que nunca cometeu um erro grave na carreira está mentindo."
    Pedro Paulo Monteleone, ginecologista e obstetra que furou a bexiga de uma paciente durante cirurgia
    Foto: Antonio Milena

    Uma novidade é que o comportamento dos médicos em relação aos seus próprios erros está mudando. Até algum tempo atrás, com medo de sofrer processos e ter a reputação manchada por uma acusação de barbeiragem, grande parte deles preferia esconder dos pacientes suas eventuais falhas. Isso só contribuía para complicar a questão. Desinformados a respeito de problemas durante a cirurgia, muitos pacientes só descobriam que tinham sido vítimas de erro mais tarde, em razão de complicações pós-operatórias. Os próprios conselhos regionais de medicina eram usados como escudo para proteger os médicos acusados de erro, o que freqüentemente lhes valeu a pejorativa denominação de "máfia de branco". Hoje, isso ainda acontece, mas há boas notícias na área. Tome-se o caso do erro cometido por Monteleone durante a cirurgia de útero. Depois de ouvir o relato detalhado do que tinha ocorrido, Rosa, sua paciente, nem pensou em processar o cirurgião. "É um alívio saber que existem médicos que contam a verdade, por mais difícil que seja ouvi-la", diz ela. Esse tipo de relacionamento franco entre médico e paciente é uma grande novidade nos consultórios e hospitais brasileiros.

    Histórias escabrosas — Para a maioria das pessoas, erro médico é sinônimo de negligência ou irresponsabilidade de maus profissionais. Inúmeras histórias escabrosas que aparecem no noticiário contribuem para reforçar essa visão (veja algumas delas nos quadros que ilustram esta reportagem). Um recém-nascido ficou cego porque esqueceram de colocar algodão para proteger seus olhos na incubadeira. Uma mulher submeteu-se a uma cirurgia no abdome e, cinco anos depois, começou a sentir dores. Ao fazer uma radiografia, foi informada de que tinha uma pinça cirúrgica na barriga, deixada ali pelo médico que a operou. Uma judoca de 14 anos foi internada para operar o menisco da perna direita. Quando acordou, descobriu que tinham mexido no menisco sadio da perna esquerda. A maioria desses casos, mais escandalosos, envolve médicos incompetentes e negligentes. Existe, porém, uma verdade irrefutável na medicina, que torna o problema do erro mais complexo e, ao mesmo tempo, mais assustador: todos os médicos erram. "Quem diz que nunca cometeu um erro grave na carreira está mentindo", afirma, sem constrangimento, o obstetra Monteleone. "Alguns erros, às vezes graves, fazem parte do dia-a-dia da medicina", diz Sérgio Mies, professor e médico da Unidade de Fígado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. "Mesmo os melhores médicos estão sujeitos a errar."


    Pelas estatísticas, percebe-se que o grande desafio da medicina não é punir profissionais negligentes que cometem erros. Isso, bem ou mal, a Justiça e os conselhos regionais já fazem. O verdadeiro desafio é encontrar um modo de evitar que os bons médicos, aqueles profissionais sérios e competentes em que os pacientes confiam cegamente, cometam falhas. Em 1991, a revista New England Journal of Medicine, uma das mais conceituadas do mundo na área, publicou um estudo feito nos hospitais do Estado de Nova York, nos Estados Unidos. A pesquisa, com base em análise de 30.000 prontuários, revelou que dois terços das complicações que resultaram em internação prolongada, incapacidade ou morte foram provocados por erros médicos. Os americanos estimam que 120.000 pacientes morrem a cada ano em conseqüência de algum engano ou descuido no tratamento. Quatro entre dez médicos americanos já foram acusados e processados por erros cometidos em consultórios e hospitais. No Brasil, as associações de vítimas de erros médicos do Rio de Janeiro e de São Paulo têm 3100 processos correndo na Justiça. Os médicos envolvidos nesses processos têm, em média, entre dez e vinte anos de profissão.

    Livre-arbítrio — Por que os médicos erram com tanta freqüência? Porque são pessoas. Errar é parte essencial da existência humana. Segundo o psicólogo inglês James Reason, autor do livro Erro Humano, o erro é o preço que os seres humanos pagam pela habilidade de pensar e agir intuitivamente. É a possibilidade de errar, ou acertar, que faz da espécie humana a única dotada de livre-arbítrio, a capacidade de escolher entre idéias, caminhos, soluções e alternativas diferentes. É também esse mecanismo que faz as pessoas melhorarem com o aprendizado e o acúmulo de novas experiências. Sem a perspectiva do erro, seríamos todos exatamente iguais, homens e mulheres aborrecidamente infalíveis e previsíveis.

    Existem áreas em que a tecnologia tem conseguido reduzir o erro à condição de uma quase improbabilidade estatística. Na indústria da aviação, a freqüência de erros operacionais é hoje de apenas um a cada 100.000 vôos. Isso é possível porque, na aviação, um homem comanda uma máquina que pode ser ajustada nos mínimos detalhes para reagir corretamente a milhares de situações já bastante estudadas. A indústria de eletrodomésticos General Electric atingiu a meta de tornar os defeitos em produtos tão raros que já não podem ser estatisticamente detectados — estima-se que a proporção seja de um erro por milhão de acertos. Em outras atividades, em que as decisões são tomadas por pessoas cujos procedimentos não podem ser regulados e ajustados, como os dos robôs, a situação é diferente. Os engenheiros erram. Os professores erram. Os advogados erram. Os jornalistas erram — esta sua revista VEJA já errou muitas vezes e, provavelmente, vai errar outras tantas mais. Na medicina, em que gente cuida de gente e lida com situações muitas vezes imprevisíveis, o erro é parte da rotina. O problema é que o médico lida com a vida humana. Isso torna seu erro mais dramático.

    "O erro de avaliação acontece. O importante é não abandonar o paciente."
    Marcos Vianna, pediatra que diagnosticou otite em um caso de meningite
    Fotos: Oscar Cabral

    Existe, no entanto, o profissional que erra e procede corretamente depois e o médico que erra e se mantém teimosamente no erro. No primeiro caso estão médicos que falham mas assumem os deslizes e os expõem francamente aos pacientes. No segundo, os que erram por negligência ou falta de humildade para reconhecer que não estão preparados para fazer determinadas cirurgias ou tratamentos. E, pior: procuram esconder os erros com atitudes desonestas em relação aos pacientes. A maior parte das denúncias de erro médico que se avolumam nos conselhos regionais e nos tribunais de Justiça tem uma história de mau relacionamento entre médico e paciente agravando a questão do erro. Muitos processos poderiam ser evitados com um diálogo franco e a continuidade do tratamento. Sabendo disso, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro criou, no mês passado, uma Comissão de Conciliação. Antes de dar entrada com a denúncia, a comissão coloca o paciente frente a frente com o médico. O profissional é obrigado a explicar, em linguagem didática, o que houve durante determinada cirurgia ou tratamento. Nos casos mais simples, os pacientes contentam-se com um pedido formal de desculpas por parte do médico. Nos outros, mais complicados, é aberto um processo no CRM.


    Exemplos semelhantes podem ser encontrados em outros Estados. Em Santa Catarina, o cirurgião Edevard de Araujo abriu um buraco maior que o esperado na bexiga de uma menina durante uma cirurgia para desobstrução de um ureter. Dois dias depois, os pontos da bexiga estouraram e a urina passou a vazar para dentro do abdome. O outro canal do ureter que não tinha sido mexido também piorou. Ao contar aos pais da paciente que teria de fazer outra operação, dessa vez de emergência, foi bem claro: "Foi uma complicação imprevisível". Os pais acreditaram e nem pensaram em processá-lo.

    Outro caso exemplar de que uma conversa honesta é o melhor caminho para evitar um processo ocorreu com o pediatra carioca Marcos Vianna, da Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro. Em 1989, Vianna atendeu uma mulher cujo filho, de 1 ano e 7 meses, tinha febre e chorava de dor no ouvido. Ao examinar o menino, o médico constatou que o tímpano estava abaulado e opaco. Diagnóstico: otite. Receitou um remédio e mandou a criança para casa. O diagnóstico estava errado. Algumas horas depois, a febre piorou, o choro aumentou e a mãe, aflita, levou o filho para outro hospital, que, dessa vez, fez um exame mais detalhado. Com uma punção, retirou-se líquido da medula espinhal. O diagnóstico foi meningite. As probabilidades de um paciente com meningite morrer ou ficar com seqüelas como paralisias e deficiências cerebrais quando não é medicado em 24 horas são enormes. Felizmente, nesse caso o menino foi socorrido a tempo e hoje leva uma vida normal. Ao saber do que tinha acontecido, o pediatra Vianna reconheceu imediatamente o erro. "O menino poderia ter morrido", afirma. Sua franqueza fez com que a família decidisse manter o menino aos seus cuidados, mesmo depois do episódio. "Qualquer profissional pode cometer erro de diagnóstico", diz o médico. "O importante é não abandonar o paciente."

    No Brasil, o que contribui para o erro e a negligência são a má formação dos médicos e as condições de trabalho na maioria dos hospitais. Dos 9.000 profissionais formados todo ano pelas 85 escolas de medicina do país, apenas 60% conseguem vaga para fazer residência. "Mesmo quem se formou na melhor faculdade de medicina do Brasil não está pronto para trabalhar sem dois anos de residência", afirma Júlio Cézar Gomes, secretário do CFM. "Esses 40% que chegam ao mercado de trabalho sem a formação completa são um perigo." Outro problema são as precárias instalações dos postos de atendimento. "Em hospitais muito grandes, a situação força uma banalização da morte", diz o professor Sérgio Mies. "Isso leva à negligência. É essencial que um médico nunca encare a morte como algo banal." Além das más condições de trabalho, a certeza da impunidade é outro fator que favorece os erros. Nos hospitais públicos, quando o médico erra, geralmente o processo corre contra a União, o Estado ou o município. Em raríssimos casos, acusa-se diretamente o profissional que cometeu a falha. Essas entidades públicas, e impessoais, pagam as indenizações, quando são condenadas, mas quase nunca se preocupam em punir os responsáveis pelo erro. "Ninguém fica sabendo nem mesmo quem é o médico envolvido", diz Marcos Vianna. Durante os quatro anos em que ele dirigiu o Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro, maternidade de referência nacional, o hospital pagou quatro indenizações por erros cometidos por médicos que nem trabalhavam mais lá. Várias vezes Marcos Vianna tentou abrir sindicância interna para apurar os erros, mas foi em vão. "Convocamos comissões de médicos especialistas, mas o corporativismo correu solto", queixa-se Vianna. "Ninguém queria ouvir falar em negligência."

    O aumento do número de processos contra médicos no Brasil deve-se a uma mudança de comportamento da sociedade. Até alguns anos atrás, os médicos eram vistos como profissionais em quem se devia depositar uma confiança cega, o que os tornava praticamente imunes à acusação de erro. Isso está mudando, graças à consciência dos pacientes de que eles são prestadores de serviços, dos quais se devem cobrar qualidade e respeito, como em qualquer outra área. Há dez anos, a maior parte das denúncias de erro partia da própria classe médica. Hoje, 57% das queixas são feitas pelos pacientes e órgãos de defesa do consumidor. Preocupados com a imagem da classe, os médicos, por meio dos conselhos regionais, estão mais empenhados em punir os maus profissionais. "Precisamos aprimorar nossa credibilidade", diz Roberto D'Ávila, presidente do CRM de Santa Catarina.

    Licença cassada — No final do ano passado, um ginecologista de São Paulo teve sua licença de exercício da profissão cassada porque rompeu o ureter e a bexiga de uma garota de 20 anos durante um aborto. No dia seguinte, com fortes dores, a paciente procurou o médico, mas ele se negou a atendê-la. A jovem foi parar em outro hospital e perdeu o útero em virtude das complicações da operação malfeita. O conselho regional considerou mais grave o fato de o médico ter negligenciado a paciente do que ter feito um procedimento ilegal (o aborto) e rompido dois órgãos. "É um indivíduo sem caráter, que não admite que errou nem tem a sensibilidade para ver as conseqüências do erro", avalia Monteleone. "Esse tipo de gente não pode exercer a profissão."

    Quando é julgado culpado por um CRM, um médico pode receber uma advertência reservada, uma censura pública, uma suspensão por trinta dias. Nos casos mais graves, tem o registro profissional cassado. Nos processos que chegam à Justiça comum, as vítimas buscam indenizações em dinheiro e, em tese, as chances de o médico ser punido são maiores. A primeira vitória na Justiça comum de uma associação de vítimas de erro médico aconteceu em 1992. "Na época foi um evento sem precedentes", lembra a advogada Célia Destri, presidente da associação fluminense de vítimas de erro médico. Desde então, outros 62 processos foram vencidos pelos pacientes. Em geral, as indenizações determinadas pela Justiça são superiores a 100 salários mínimos. Os médicos brasileiros estão apreensivos com a chance de ter seus procedimentos discutidos em tribunal e começam a pensar numa "medicina defensiva". A Associação Médica do Rio Grande do Sul elaborou um manual para seus sócios se precaverem de processos por erro médico, com orientações que chocaram alguns especialistas no assunto (veja quadro). Também há companhias de seguro oferecendo planos especiais de cobertura para os médicos. Uma delas, a Arias Villanueva, já tem 400 clientes. O segurado paga 158 reais por mês e, se for processado, tem direito a 130.000 reais para pagar indenizações e honorários do advogado.

    Nos Estados Unidos, o medo de processos judiciais tornou-se uma autêntica paranóia entre os médicos. Setenta por cento dos ginecologistas e obstetras americanos — área mais visada — já foram processados pelo menos uma vez. Há casos de profissionais que foram condenados a pagar milhões de dólares em indenizações. Essa indústria de processos tornou-se um filão para as seguradoras. Todo médico ou hospital tem seu plano de seguro para se prevenir contra a falência no caso de ser condenado a pagar uma indenização milionária. "Lá, o medo de processos é tão generalizado que ninguém cria nem improvisa nada", afirma o médico mineiro Randas Vilela Batista, que se tornou mundialmente famoso por inventar uma cirurgia que retira um naco do músculo cardíaco para curar determinadas doenças. "Nos Estados Unidos, ninguém teria coragem de fazer uma cirurgia como essa pela primeira vez", conta Randas. "O risco de sofrer um processo, caso algo saísse errado, seria grande demais."

    Apesar da paranóia, os Estados Unidos conseguiram reduzir a incidência de erros em determinadas áreas da medicina, como a anestesia. Esse é um caso espetacular de sucesso. No início da década de 80, uma a cada 10000 anestesias feitas nos hospitais americanos tinha algum problema que resultava em morte. O presidente da Sociedade Americana de Anestesiologistas, Ellison Pierce, decidiu lançar uma cruzada para reduzir as chances de erro. Pierce usou um trabalho realizado dez anos antes pelo engenheiro Jeffrey Cooper, contratado pelo Hospital Geral de Massachusetts para estudar as causas dos problemas durante a anestesia. Cooper analisou 359 casos de erros, que incluíam pouco treinamento dos profissionais, deficiência dos equipamentos, má comunicação entre os membros da equipe cirúrgica, cansaço e desatenção. As alterações determinadas por Pierce foram, em geral, fáceis de executar. Reduziram-se as horas de trabalho, os mostradores dos equipamentos foram padronizados, sistemas de alarme passaram a ser acionados automaticamente em situações de risco, trancas de segurança para evitar excesso de gás anestésico foram instaladas. Uma década depois, o índice de mortalidade caiu para uma em mais de 200000 operações, redução de 95%.

    Com os resultados obtidos na anestesiologia, fica claro que, apesar das limitações impostas pela condição humana, a medicina ainda pode melhorar muito no combate a seus erros. A busca da perfeição, ainda que inatingível, é a única saída compatível com a ética médica nesses casos. Colocar a culpa nas péssimas condições do sistema de saúde brasileiro, na formação deficiente dos profissionais, no excesso de horas trabalhadas, no baixo salário ou na falta de equipamento adequado é fugir da essência do problema. Em alguns hospitais universitários e poucas clínicas particulares, acontecem reuniões semanais em que médicos, enfermeiras, residentes, psicólogos, fisioterapeutas, todos os envolvidos em cada departamento, discutem os casos complicados. Na unidade de fígado do Hospital das Clínicas de São Paulo, as reuniões têm o nome de "complicações e óbitos". "Discutimos abertamente tudo o que acontece, principalmente os erros. O objetivo é aprender com o insucesso e tentar evitar a repetição", explica o médico e professor Sérgio Mies. Discussões dessa natureza são a melhor notícia que se poderia dar aos pacientes. "Não é razoável exigir que a medicina atinja a perfeição", afirma o médico americano Atul Gawande, autor de um artigo sobre erro médico publicado no mês passado pela revista The New Yorker. "O que é razoável é pedir que a medicina nunca deixe de buscá-la."

    Faltou um exame

    Foto: Moreira Mariz
    Durante uma consulta pré-natal, o médico Marco Túlio Vaintraub, de Belo Horizonte, perguntou à professora de educação física Soraia Magalhães qual era seu tipo de sangue. Ela respondeu Rh positivo. O médico não se preocupou em checar a informação mediante um exame de laboratório. O resultado foi desastroso. Quando Henrique nasceu, na Maternidade Otaviano Neves, apresentou sinais de eritroblastose fetal, uma doença que acomete recém-nascidos cujos pais têm incompatibilidade sanguínea. Soraia tinha Rh negativo, mas a equipe da maternidade levou dois dias para identificar o problema e tomar a atitude indicada: substituir todo o sangue do garoto. Era tarde. A doença já tinha provocado uma lesão no cérebro. Hoje, com 2 anos e meio, Henrique não fala nem anda e tem o desenvolvimento retardado. O obstetra e a maternidade respondem a processos na Justiça. "Foram dois erros grosseiros seguidos", acusa a mãe do garoto. Vaintraub se defende dizendo que a culpa pela informação errada sobre o tipo sanguíneo foi de Soraia. "Não cabia a mim duvidar dela", diz o médico. O hospital afirma que não tomou as providências a tempo porque trabalhava com uma informação errada.



    Morte na cirurgia

    Foto: Liane Neves
    Adelaide Perazzollo Balestreri, de 72 anos, internou-se no Instituto de Cardiologia de Porto Alegre, em setembro do ano passado, para fazer uma operação de ponte de safena com o cardiologista João Ricardo Sant'Anna. Quatro horas depois de iniciada a cirurgia, a família foi avisada de que tudo correra bem. Algumas horas mais tarde, o médico disse aos parentes que Adelaide apresentava uma queimadura nas costas. Só no dia seguinte se descobriu que o caso era muito mais grave que a versão inicial: a paciente tinha queimaduras de terceiro grau nas costas e nádegas e corria risco de vida. "Ela estava em carne viva, inchada, parecia um monstro", lembra Miriam Manfredini (na foto com o retrato da avó). Várias cirurgias de enxerto de pele foram feitas, mas Adelaide não resistiu e morreu. Na necropsia, também foi constatada fratura de duas costelas. O cardiologista afirma que as queimaduras devem ter sido provocadas por um defeito no colchão térmico da sala de cirurgia. "Minha operação foi bem feita, mas houve algum problema com os equipamentos", alega. O caso está na Justiça.



    "Uma fatalidade"

    A servente escolar Lucia Silva de Carvalho levou seu filho único, Bruno, de 9 anos, ao Hospital da Piedade, no Rio de Janeiro, para extrair o apêndice no dia 29 de setembro de 1993. Por problemas na anestesia, Bruno teve uma parada respiratória. O cérebro ficou sem oxigênio e o menino entrou em coma. Saiu da mesa de cirurgia direto para a UTI. Um dos médicos chamou Lucia em um canto e disse: "Houve uma fatalidade. Ele parou". Durante vários dias, a mãe tentou descobrir o que tinha acontecido, mas os médicos e enfermeiros desconversavam. Três meses mais tarde, Bruno teve alta. Desde então, vive em estado quase vegetativo aos cuidados da mãe: não mexe braços e pernas, não fala, não reage a nada. Para cuidar dele, Lucia parou de trabalhar. Um ano depois, entrou com um processo contra a União, dona do hospital, alegando erro do anestesista. Ganhou em primeira instância e recebe dois salários mínimos como "tutela antecipada", uma indenização provisória até a definição do caso.



    "Foi um horror"

    Para eliminar um vírus, a técnica em agropecuária Elizabete Maria Barbosa submeteu-se a uma cauterização no útero. Foram quatro sessões de tratamento nas quais a ginecologista Thereza Chrystina Elias Cardoso, do Recife, errou na quantidade de ácido aplicado, provocando dores e queimaduras visíveis na coxa e na virilha. "Ardia, queimava. Foi um horror", conta Elizabete. Os ferimentos causaram estreitamento e colagem do canal vaginal. As tentativas da médica para corrigir o problema foram ainda mais desastrosas. Primeiro procurou abrir a vagina da paciente com as mãos. Não deu certo e ela optou por uma cirurgia, na qual o bisturi elétrico provocou novas queimaduras, de terceiro grau, em Elizabete. Ao receber alta, a técnica foi informada de que nunca mais teria atividade sexual. Acionada pelo Ministério Público, a ginecologista foi condenada a ficar sem trabalhar quatro anos e meio. Recorreu e hoje é médica num hospital e no posto da prefeitura de Olinda.



    Pinça na barriga

    Em 1992, a aposentada carioca Isaíra Maria Gonçalves submeteu-se a uma operação para retirada de um tumor no útero. Na aparência, a cirurgia, realizada no Hospital Salgado Filho, da rede municipal, foi um sucesso. Isaíra teve alta no dia seguinte e passou a viver normalmente. Até que, no Natal de 1997, começou a sentir uma dor forte e persistente na barriga. A urina estava escura. "Achei que tivesse comido alguma coisa estragada", lembra. Com essa suspeita, no dia 8 de janeiro do ano passado ela foi novamente levada pela família ao Hospital Salgado Filho. Uma radiografia (foto) revelou uma informação espantosa: dentro de seu abdome havia uma pinça cirúrgica de 15 centímetros. O instrumento tinha sido esquecido pela equipe que fez a operação, em 1992. Isaíra foi transferida imediatamente para o centro cirúrgico e operada. "O mais inacreditável é que, durante cinco anos, eu não senti nada", diz. A família de Isaíra está movendo uma ação indenizatória contra o município do Rio de Janeiro por negligência médica.



    Um guia para esconder o erro

    Associação Médica do Rio Grande do Sul publicou um manual para orientar seus filiados sobre como se prevenir de processos por erro médico. Assinado pelo advogado Marco Antonio Bandeira e pelo médico e advogado Luiz Augusto Pereira, o guia deixa claro seu objetivo já na apresentação: "Neutralizar fatores externos agressivos e preconceituosos em relação a nossa atividade, como associações de vítimas de 'erro médico', autoridades oportunistas, imprensa sensacionalista". A pedido de VEJA, o professor de ética médica Marco Segre, da Universidade de São Paulo, e o advogado paulista José Rubem Macedo Soares leram o manual. "O texto instiga a sonegação fiscal, faz apologia do crime, incita a prática de supressão de documentos, aconselha fraude processual e fere o código de ética dos advogados", afirma Soares. "Do ponto de vista da ética médica, é uma aberração", resume Segre.
    Confira alguns itens do manual:
    "Quando for decidido pelo médico que deve prestar depoimento perante a autoridade policial ou a promotoria, deve fazê-lo usando a linguagem mais técnica e hermética possível, recusando explicações em termos leigos ou coloquiais. Para dificultar a denúncia."
    "É princípio de boa cautela consultar um advogado para ser orientado sobre a forma legal de retirar o patrimônio de nome próprio, para evitar o risco de perdê-lo para o paciente demandante."
    "O médico faz hoje parte de uma classe desprotegida. Sem poder político nem união profissional, está acuado por pacientes gananciosos."
    "As precárias condições e a falta de equipamentos impõem ao médico decisões que a ele não cabe tomar. Tipo quem vai viver, quem vai morrer, na insuficiência do número necessário de respiradores artificiais. Nesses casos, deve ser observada a rigorosa ordem cronológica de chegada dos pacientes ao local do atendimento. Não importa quem tem maiores chances de sobreviver."
    "Evitar pacientes que recusam determinadas terapias por razões éticas ou religiosas."
    "Evitar plantões de atendimento público."
    "O Conselho Federal de Medicina afirma que o prontuário médico pertence ao paciente. Está equivocado. O paciente tem direito a um relatório médico, elaborado a partir do prontuário."

    Com reportagem de Dina Duarte, do Recife, José Edward,
    de Belo Horizonte, e Cristine Prestes, de Porto Alegre


    As mentiras dos médicos

    Pesquisa americana revela que boa parte dos doutores não conta toda a verdade aos pacientes sobre prognósticos e erros

    Luciani Gomes

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    VÍNCULO
    Parte dos profissionais não fala de suas relações com laboratórios
    Médicos mentem? Além de competência técnica, espera-se que o profissional de medicina nunca omita ou exagere, para mais ou para menos, o quadro de um paciente. Mas uma pesquisa feita nos Estados Unidos e publicada este mês na revista Health Affairs, voltada ao aprofundamento de políticas de saúde, revela que a honestidade não está sendo levada tão a sério pelos principais profissionais da área de saúde. De cerca de 1,9 mil médicos entrevistados, 55,2% confessaram ter dado um prognóstico mais otimista do que exigia a situação. “O grande problema nesses casos é a omissão de informação necessária para que o paciente tome decisões sobre sua saúde”, disse à ISTOÉ a coordenadora da pesquisa, Lisa Iezzoni, professora da escola de medicina da Universidade de Harvard.

    Lisa cita o exemplo de um paciente de câncer que, ao receber o diagnóstico, não compreendeu o avançado estágio da doença. O resultado foi que não conseguiu se preparar – nem preparou a família – para as perdas emocionais e financeiras que sofreriam. “É humano não querer chatear. Mas isso não pode impedir um médico de passar a informação correta”, pondera Lisa. Para o médico Edevard José de Araújo, do Conselho Federal de Medicina (CFM), a verdade deve sempre ser dita, e de maneira muito clara. “Talvez não toda a verdade num primeiro encontro, mas durante dois, três ou mais, se for necessário, para um melhor entendimento”, defende.

    O estudo apontou também uma grave omissão em relação aos erros médicos. “Somente 20% disseram ter assumido e relatado ao paciente a ocorrência de erros durante o tratamento ou diagnóstico”, afirma a pesquisadora. “O profissional não pode prometer um resultado 100% satisfatório. Mas, se algo acontecer fora do previsto, ele tem que informar”, orienta Araújo, do CFM.

    Porém, 34% dos profissionais revelaram que não concordam completamente com a ideia de que devem reportar aos pacientes os erros médicos significativos cometidos no atendimento.

    Outro ponto obscuro na relação médico-paciente é a transparência sobre o envolvimento dos profissionais com a indústria farmacêutica. Trinta e cinco por cento não estão seguros ou discordam da obrigatoriedade de informar ao paciente os seus vínculos com as empresas. “É um relacionamento impossível de não existir por causa do assédio e da força dessa indústria e que leva a um tipo de relação condenada, da qual nem sempre o paciente sabe”, diz Araújo.

    E já que a relação médico-paciente nunca é tão clara como parece, a solução é desmistificá-la, conforme a professora Ligia Bahia, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Os médicos são seres humanos e, como tais, sujeitos a diversas influências.” Ela recomenda aos pacientes exercerem sua autonomia, exigindo sempre explicação completa sobre qualquer diagnóstico ou tratamento.
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